Fim de Império



Apepinado pelos abrileiros, o romance histórico volta a estar na moda. Nos últimos lustros, o género foi cultivado com talento entre nós por autores como João Aguiar, Fernando Campos, Mário Cláudio, Sérgio Luís de Carvalho, António Cândido Franco, Mendo Castro Henriques, o próprio Mário de Carvalho. Depois deles é Jaime Nogueira Pinto (JNP) quem atima o exercício exigente. Assinalado já como cronista e professor universitário, ensaia-se agora romancista de fôlego. Novembro cumpre a função primeira do seu género literário: juntar ao prazer da leitura a transmissão do conhecimento histórico. 

Em O Império dos Pardais, editado em 2008, João Paulo Oliveira e Costa resgatou num registo próprio o orgulho português do Império, fez à sua maneira as pazes com a história tão denegrida do Portugal ultramarino, d'aquém e d'além-Mar, do século XV até à era dos campeões da democracia e da libertação dos povos. Nesse livro curioso e imaginativo, o autor oferece-nos um enredo de espionagem, crime e sexo no período dos Descobrimentos. JNP, por seu lado, dá-nos a perspectiva do fim da aventura, o fim do Império, quando por descobrir só os podres e as derradeiras traições – a contracapa esfarelada de um livro de cinco séculos. E fá-lo apoiado na própria experiência pessoal, a de antigo militante nacionalista que se voluntariou para África, sem cobrar medo, optando por viver perigosamente, o que entre nós é pouco habitual.

Um romance fascinante

Novembro é um romance fascinante, de extrema habilidade na construção e na escrita. Há personagens riquíssimas de saber e interioridade, outras bem caçadas pela mira do romancista. É o caso de Carlinhos Pestana, o infalível nazi de todos os grupos nacionalistas, que detestava Chopin ("Um polaco?! Como é que vocês gostam de um polaco?! Wagner, ponham Wagner, o‘Rienzi’, o ‘Navio-Fantasma’,isso é que é música!", p. 32), sabia de cor os nomes das divisões das Waffen SS e gostava de discorrer sobre o incentivo ao exercício físico no Terceiro Reich e a vida sexual de Hitler. Um daqueles para quem a História acabou com a tomada de Berlim pelos soviéticos.
 
A trama decorre entre o Verão de 1973 e o Outono de 1975. Depois da entrega de Angola, a 11 de Novembro, deu-se o 25 de Novembro. Empandeirado o Império, o rectângulo já podia entrar na ordem e na democracia. E com esta viria o desenvolvimento: assim havia quem o jurasse entre pessoas gradas pelo alfabeto e pela gravata. Era decerto ingenuidade lorpa ou mero ensaio para acalmar o vulgacho desaustinado. O pouco que se desenvolveu foi uma democracia de siglas, do MFA ao FMI, que começou de pôr os portugueses a reivindicar de mão fechada e os prostrou no fim a pedir de mão estendida.

A obra afigura-se importante porque nos dá a perspectiva da época vista do nacionalismo revolucionário ou da direita nacionalista (chamem-lhe o que quiserem). E daí incomum, uma vez que em Portugal é sempre a esquerda quem conta a história, a oficial e a de ficção, escreve as notícias, distribui as classificações, lança os foguetes e apanha as canas. E por isso, como o próprio JNP já referiu noutros trabalhos, as ideias dominantes sobre o nacionalismo e a direita vêm da esquerda e reflectem a visão esquerdista da vida e do mundo.

Hemiplégico, o novo regime nasceu paralisado da direita e, para se dar ares de pluralista, é forçado a chamar direita ao centro e às vezes ao centro-esquerda. De leitura obrigatória, pois, este romance de JNP sobre uma geração que, à direita, também viveu as suas utopias, os seus arremedos de clandestinidade, antes e depois do 25 de Abril, o combate político, o exílio, também criticou o regime anterior e foi vítima da censura, evitando porém a chorinquice da esquerda mais piegas. Uma geração que combateu nas ruas e nas universidades, que interveio no debate de ideias, fez amizades, apaixonou-se e ousou sonhos de aventura e revolução. A esses homens e mulheres, o que os separava dos radicais de sinal contrário era o nacionalismo esturrado, o pessimismo antropológico, o direito à diferença contra a obsessão igualitária, o repúdio do economicismo – e a defesa intransigente do Ultramar.

Mas o Império se desfez sem cumprir-se Portugal. Uns mantiveram-se de pé no meio de um mundo em ruínas, fiéis aos valores de sempre, exilados do interior; outros, mais arejados de ideias, trataram de fazer pela vidinha e breve descobriram as vantagens do regime nascente. De qualquer idiota formou-se um democrata de improviso. O costume nas revoluções. Felizmente, o livro não vai além de 26 de Novembro. Evita os cata-ventos e, à sua maneira, rende preito a essa forma superior de amizade que é a camaradagem.


 
Eduardo e Diana

Há nas principais personagens masculinas do romance alguma coisa do autor, o que poderá ser dissecado pelos críticos minuciosos. Mas o que no livro mais surpreende de beleza e astúcia narrativa é o relato de Eduardo e Diana, um dos mais belos pares da ficção portuguesa contemporânea. A história de Eduardo e Diana, admiravelmente narrada, convoca o leitor, a súbitas, para o universo de Brasillach, com René e Florence entre o amor, as viagens e a guerra, ou com Patrice e Catherine nas suas conversas sobre literatura e cinema, ou até para o Je vous écris d’Italie, de Michel Déon, também pela guerra, mais a visão de Stendhal e o itinerário de um homem fascinado pela História e por uma mulher.

Só não é de citar o casal Gilles e Pauline, de Pierre Drieu la Rochelle, porque a argelina encontra mais o seu símile na Alice de Novembro, africana também, descarada e selvagem como ela, ambas vestindo-se sem gosto: "Abusas da crioula, dá-te gozo comê-la… ah, mas eu gosto! Sou tão tarada e desavergonhada como tu!" (p. 222)

Tal como o par de Comme le temps passe, Eduardo e Diana são dois seres que podem procurar-se, perder-se, encontrar-se, sem nunca deixarem de ser feitos um para o outro. De antologia o episódio em Madrid, debaixo do Arco de Cuchilleros, no topo das escadas seiscentistas que sobem para a Plaza Mayor, nesse instante convertidas em varanda dos Capuletos. Ou aqueloutro no Mesón Rias Bajas, num quadro de beijos na boca, conversas sobre a guerra, a honra, o nacionalismo revolucionário, e mãos por dentro da blusa dela, como brincando às escondidas com o empregado gorducho, de casaco branco e sotaque galego.

O dilema corneiliano

O trio Eduardo-João-Diana lembra longinquamente o triângulo formado por Régis, Michel e Anne-Marie no Les Deux Étendards.Como Régis no romance de Rebatet, também Eduardo se confronta com o dilema corneiliano entre a vida amorosa e a via heróica. Quando Diana lhe pergunta em Madrid onde iria estar ele daí por uma semana, responde decidido: "Volto para Angola, disse ao meu comandante que voltava […] Não quero desertar nem trair as minhas lealdades." (p. 476) E, todavia, era o mesmo apaixonado que a queria mais do que tudo na vida: "mais do que à Pátria, mais que à família, mais que às ideias, mais que à honra, mais que aos seus amigos e camaradas." (p.486)

Enfermidades

Mas no melhor pano cai a nódoa. A narrativa demasia-se em jantares de luxo, uísques, mexeriquices de banqueiros, tios e tias – e apresenta outros aleijões burgueses. A obra parece ter sido executada sem pretensões literárias, um pouco ao fluir da pena (agora decerto electrónica). Ao autor, porque culto e lido em bons romancistas, exigia-se um texto final mais de acordo com a sua capacidade.

Entre outras enfermidades do estilo, topam-se o uso recorrente da palavra coisa para designar situações que mereciam precisão descritiva, e da palavra muito antes do adjectivo, sinal de que este não foi bem escolhido ou que é fruste, e ainda o recurso abundoso a verbos inexpressivos e gastos. Entre estes avultam o que as gramáticas classificam de auxiliares, como ser, ter e estar. De alguns passos pouco merecedores de traslado, citam-se estes: "E tinham aproximado as cabeças e as bocas sôfregas. A dela sabia a uma especiaria qualquer. Tinham ficado assim por minutos, vencendo abismos de solidão e culpa. ‘Henrique, vamos embora! Leve-me para um sítio qualquer! Quero estar consigo. Agora.’ Fora a primeira vez que estivera com uma mulher desde a morte da Isabelinha." (p. 258); "Em Coimbra, o Baluarte e a Comédia também tinham sido invadidos e saqueados e o Miguel Cunha e o miúdo Pires tinham ido dentro […] No Porto também tinham sido detidos militantes."(p. 280); "A culpa não é tua, a culpa é minha que não tenho tentado compreender-te, ajudar-te. Tenho vindo ver-te mas não tenho estado aqui de corpo e alma. É essa a verdade. Tenho estado longe […] Sabes, João, há uma coisa que tinha resolvido não te dizer […]"(p. 391)

E ainda este, por derradeiro: "Dissera-lhe o primo Artur, que era do PPD, que era preciso irem todos ao comício do Mário Soares na Fonte Luminosa." (p. 525) A frase, já de seu natural rançada pela menção a Soares, folgava mais sem a repetição do verbo. Os méritos de um prosador, por muito que se encareçam, não vencem o tédio e a insulsez destes vícios do estilo. Fosse outro o autor e não haveria lugar a reparo. De JNP, porém, esperava-se ao menos uma revisão mais cuidada.

Um grande livro

Seja como for, Novembro é um grande livro. Uma viagem de memórias, um regresso desencantado mas lúcido, com alguma nostalgia, ao tempo de uma geração convocada ao combate e ao sacrifício – e que sobreviveu à própria Pátria.

"Acho que perdemos todos", diz Eduardo ao taxista na última página do livro. Tem o rapaz carradinhas de razão. Perdemos todos e, se calhar, perdemos tudo.

[Novembro, Jaime Nogueira Pinto, A Esfera dos Livros, Lisboa, 637 págs., 2012] 







1 comentário:

  1. Bela recensão crítica, caro confrade Bruno. E gostei mais ainda de ler a versão que publicaste n'«O Diabo». Saudades tuas. Forte abraço.

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