La Crème de La Crème

Recorrer a um creme para dar e dar-se a ilusão da retoma da virgindade pode surpreender muito Boa Gente, mas não o cínico e atento sujeito que assina este postal. A imagem pública do estado incólome há muito que era mais questão de cosmética do que de verificabilidade efectiva. E, com as mudanças de costumes, apesar dos revivalismos da Luisiana, tornou-se um assunto por demais viscoso.
Que poderei, pois, acrescentar? Talvez que a culpa do sucesso deste produto de beleza deva a emanações do sucesso Pop «LIKE A VIRGIN, já que o "como" transfere o âmago da questão para a aparência, em prejuízo da biografia... Uma ridicularia comercial, é o que é. A desejabilidade que lhe apresentam como substrato estará por certo muito longe da Felicidade da passagem pela«Porta Estreita» da mensagem Évangélica, pelo que não passa dum retorno gelatinoso de mitos do tipo "Fonte da Juventude". E aqui, sim, sociologicamente, esta comercialização recente dá-nos matéria de reflexão: baptizar um inoculador de virgindade como «18 Again», só será intelígível na Índia ou arredores, a precocidade das adolescentes a Oeste tornaria incompreensível a alusão! Bem dizia Kipling que «O Leste é o Leste, o Oeste é o Oeste e os dois jamais se encontrarão...». A imagem é Handpicked, de Glen Tarnovski, que gostaria de traduzir por Escolhida a Dedo...

A Prússia e a França


Completam-se este ano três séculos do nascimento de Frederico II da Prússia. A excelente “La Nouvelle Revue d’Histoire”, dirigida por Dominique Venner e disponível nos quiosques nacionais, aproveitou a ocasião para dedicar o ‘dossier’ do seu mais recente número à Prússia e às suas relações com a França.

Para começar, Jean-François Gautier recorda-nos que quando Voltaire chegou a Berlim, descobriu que aí se falava francês. Era a língua da cultura da altura e sobre é sobre a relação e as influências mútuas nos dois países que reflecte no artigo “A Prússia na escola da França”. De seguida, Henry Bogdan dá-nos uma perspectiva histórica das origens da Prússia, partindo dos cavaleiros teutónicos. Para conhecermos melhor quem foi Frederico, o Grande e qual a sua relação com a Alemanha, podemos ler a entrevista com Sven Externbrink. De referir, ainda, os artigos “A Prússia depois de Iena”, de Jean-Paul Bled, “Do patriotismo prussiano ao nacionalismo alemão”, de Thierry Buron, e a cronologia que traça uma breve História da Prússia. Mas o destaque vai para o excelente artigo de Dominique Venner sobre “O eterno mito prussiano”.

Para além do ‘dossier’, podemos ainda ler a entrevista com o historiador da guerra Henri de Wailly e vários artigos, dos quais se referem: um testemunho de uma francesa da Argélia sobre a Igreja e os franceses da Argélia, uma reflexão sobre o filósofo francês Michel Onfray, por Laurent Dartez, e a recordação da Batalhas das Navas de Tolosa, por Philippe Conrad. Sobre este último artigo, apesar de estar bem feito, deve dizer-se que não se compreende porque não refere a presença das tropas portuguesas que participaram na batalha. No entanto, na cronologia das grandes etapas da Reconquista, feita pelo mesmo autor e que acompanha o artigo, são referidos alguns momentos-chave ocorridos em território nacional, a saber: a Batalha de Ourique, a Reconquista de Lisboa e a tomada do Algarve.

Por fim, lugar ainda para ficar a saber mais sobre um assunto bastante actual, com o artigo de Annie Laurent sobre as causas históricas da crise síria. Como sempre, uma óptima revista a não perder.

Verdade Nua e Crua

Como é perigosa a rendição incondicional à literalidade! Até agora, o caso mais emblemático era o de uma comunidade religiosa muito minoritária que, tomando na sua imediata dimensão a passagem de S. Marcos onde se ordena que brandam serpentes, realizava umas reuniões rituais estranhas, com os participantes obedientemente apertando cobras vivas entre as mãos. Agora, temos o problema da Imprensa. Recomendaram-lhes que, sempre que os intereses hipócritas os mandassem calar em assuntos sérios e inconvenientes, gritassem «o Rei vai nu!». Pois estas luminárias pensaram que era para tomar à letra o conselho e, na indisponibilidade de um Soberano para o strip, alegremente chafurdaram nas brincadeiras atrevidas da juventude de um Príncipe, apregoando-lhe essa pouco alegórica nudez. Que admira que os súbditos não hajam sido sensíveis à proeza denunciante dos pseudo-jornalistas?

A Indefinição do Artigo



O passamento de Neil Armstrong reavivou-nos a memória sobre o Herói, uma das pessoas menos aluadas que saltaram para a ribalta, apesar da circunstância com que teve de conviver e o celebrizou. A correcção que, insistentemente, aduziu, de ter transmitido a impressão de ser o seu um pequeno passo para um homem e não, como passou à História, para o Homem, revela a renitência em, para lá dos aparelhos de ponta que pilotou, se deixar transportar pela embriaguez à base da própria glória. Ao recusar a personificação da Espécie no seu acto, introduziu uma travagem à sede de identificação com a Excelência e a superação de limites a que a maior parte dos humanos dispondo de tempo e interesse sucumbem. A mitificação generosa da viagem lunar havia, de resto, sido preparada pelos pioneiros do desembarque no satélite saídos da concepção de Hergé, os quais conviverão muito melhor com os holofotes e o simbolismo, estando, como estão, isentos de envelhecer e morrer. Já há quem reclame uma sepultura lunar para o Insigne Desaparecido. É estimável como projecto de homenagem, mas seria uma completa incongruência com a personalidade do Comandante da Apolo 11. «Cinzas às cinzas, Pó ao pó», como qualquer forma de inumação terrena, será muito mais consentânea com a essência cíclica de parte da condição que, dos feitos ao fim, é a dos nossos Melhores.

As Quatro Penas do Pavão

No momento em que se aguarda a sentença de Breivik, cumpre olhar a loucura envolvente nas penas em compita. O Gabarola homicida pede para si a Morte, que a sociedade mentalmente incapaz em que vive não lhe pode dar. Restam 21 anos de férias prisionais, com cela especial e espaço acrescentado, a mesma pena prolongada por razões de segurança e o internamento psiquiátrico. A primeira é fruto da alienação dos penalistas que, na Escandinávia como neste Jardim à beira-mar plantado, vamos tendo de aturar. Dar vinte anitos quase redondos a um premeditadíssimo assassino em massa é sofrer da doença psíquica que faz não reconhecer a proporcionalidade da culpa. Estender-lhe o encarceramento não cabe em qualquer lógica: a triste vedeta deste julgamento está satisfeitíssima da vida com os resultados que alcançou e não há sinais de que pretenda acrescentar currículo. Logo, só pode ser sancionado pelo Passado, não por representar perigo para o Futuro. Por fim, a loucura de declarar o arguido louco. Estamos, verdadeiramente, perante o caso em que o mentalmente incapaz considera os outros "os verdadeiros malucos". No caso, uma sociedade inepta no que toca a lidar com o crime mais repelente e que, para lá da verborreia televisiva, no íntimo, considera pior a inflicção de penas do que os factos que lhes dão azo, sem perceber que não é igual nem parecido despachar criminoso encartado ou matar  a frio inocentes.
Mais do que o expediente rotineiro de defensores sem capacidade de maior, a invocação da loucura faz aqui de consenso para qualificar o Mal com que se não consegue conviver, por partir do preconceito apatetado de que um membro da espécie não pode ser desumano a partir de um certo ponto. Ou seja, uma consagração da insanidade no caso vertente seria um meio tosco de a comunidade se tranquilizar quanto a uma inocência de que está desprovida. Só por isso se abstrai de que o estado de saúde cerebral do criminoso apenas seria relevante se o fizesse incapaz de reconhecer a distinção entre o Bem e o Mal, que, mesmo para as concepções mais laicas e indiferentistas, subsiste como pedra angular da colectividade. Quando pôs a bomba em Oslo o maçon homicida conseguiu muito mais do que matar pessoas, criar uma manobra de diversão e atacar o Governo: fez explodir a ficção de Justiça que nos rodeia. A pintura é de David Teniers o Jovem, A Remoção Cirúrgica da Pedra da Loucura

Até à Vista, Comandante!

O Comandante Vicente de Moura, Pessoa de afabilidade exemplar com quem, há uns anos, tive a honra de trocar breves palavras, vai largar o leme das participações olímpicas lusas e sugere, para aumentar a dimensão do Desporto nacional, uma «Mocidade Portuguesa despolitizada». Enfim, não posso concordar com a perspectiva de uma reedição asséptica desse grande enquadramento juvenil vir a trazer-nos algo de bom: a grandeza e importância do legado educativo dela estavam no cimentar da camaradagem e unidade acima de f(r)acções infra-nacionais, precisamente o contrário do que o espírito de concorrência, quer na Economia quer nas competições profissionalizadas, pretende implementar. O Regime que nos emagrece não tem lugar para um referencial gregário, salvo na embriaguês efémera das fugazes lides das selecções. Tendo-se extinto também o Remo da MP, não sobra uma alternativa de tão grata memória para remar contra a maré.

Mais Tintin na História


No ano passado, a revista francesa “Historia” e o jornal “Le Point” publicaram um número especial, em formato de álbum, onde são retratados momentos-chave do século XX que inspiraram a obra de Hergé e a criação de várias das personagens que habitam no universo de um dos mais famosos e apreciados heróis da banda desenhada. Talvez motivado pelo grande sucesso deste lançamento, os editores decidiram repetir a dose e publicar “Les personnages de Tintin dans l'histoire vol. 2” (encadernado, 130 páginas, 10,90 euros). Este segundo volume está disponível nas bancas portuguesas, reúne como autores vários historiadores, académicos e jornalistas e está dividido em capítulos que associam cada aventura de Tintin com uma personagem e um artigo sobre o período histórico no qual se insere.

Das dez personagens escolhidas, vejamos alguns exemplos. O primeiro álbum tratado é “Tintin na América”, e a personagem de Al Capone, inspirada na proibição do álcool nos EUA. Já em “A Estrela Misteriosa”, e escolhido é Philippulus e o tema são as viagens ao Pólo Norte. Depois, em “As Sete Bolas de Cristal”, descobrimos Bergamotte e viajamos ao Império Inca. Em “Objectivo Lua”, ficamos a conhecer Wolff e a saber mais sobre o projecto de conquista espacial alemã que nasceu nos anos 30. Mas o principal destaque vai naturalmente para o português Senhor Oliveira da Figueira, associado à aventura “Carvão no Porão”.

Este livro inclui ainda um artigo sobre a arte em Hergé e outro sobre o ‘affaire’ Legros. Por fim, os interessados em aprofundar os temas tratados podem recorrer às duas breves bibliografias, uma com obras sobre os momentos históricos referidos e outra sobre o mundo de Tintin.

Bastante interessante para os entusiastas de um dos nomes maiores da banda desenhada franco-belga, este é mais um álbum obrigatório na colecção de qualquer tintinófilo.

Visita para hoje

Jogo para hoje


Poema para hoje

Rosácea d'Aljubarrota


À vista do Mosteiro
da Batalha
— há conquista
que resista,
há lá guerreiro
que valha?!...

... Deixai, então, que vos fale
(— porque me dá cuidado
e por mais nada!)
d'aqueloutro Portugal
talhado à espada
e condenado, afinal,
a não ser nada... —

... Sala d'aula do Além,
anfiteatro do Mar,
— que ninguém, que já ninguém
hoje vem
contemplar...


Rodrigo Emílio
in "Poemas de Braço ao Alto", 1982.

Cromo para hoje


Cassiano

Uma óptima surpresa foi encontrar hoje na página principal do Google a imagem do Portugal dos Pequenitos, a propósito do aniversário de Cassiano Branco.


Ainda na semana passada passei em frente ao Éden e lembrei-me do que escrevi a propósito de um livro sobre este arquitecto genial: «Pena que tenham escolhido para a capa uma imagem (talvez demonstrativa daquilo a que chegámos) do Éden Teatro "recuperado". Um abastardamento que passou por pôr palmeiras no interior. Algo a fazer lembrar o "Mundo Perdido"... Só falta um pterodáctilo a voar!»

Heróis da piscina, nobre povo


Se Michael Phelps fosse português (género Obikwelu, versão caucasiana), existiriam por cá ruas Michael Phelps, avenidas Michael Phelps e alamedas Michael Phelps, para além de praças, esplanadas, auditórios, bibliotecas, cine-teatros, hospitais, ginásios, escolas, pontes e até centros comerciais (sob a marca registada "Phelpshopping").
Em postais distintos, os bloguistas lusos esfregariam nas ventas da troika as vitórias do campeão como prova irrefutável do acerto português e da superioridade de Keynes.
O Presidente da República ver-se-ia obrigado a contratar mais um assessor de imprensa, por coincidência primo do actual, só para escrever os comunicados laudatórios. E em cada 10 de Junho seria já o próprio Phelps a impor as comendas de mérito nos pescoços derreados de tanto mourejador pela Pátria.
Os jornais divulgariam, com indisfarçável incómodo, os escândalos da Fundação Michael Phelps, tomada de videirinhos e comissários políticos. As revistas esquadrinhariam a intimidade do nadador – e Lili Caneças, campeã olímpica da vida cor-de-rosa, viria em socorro do atleta com sentença aforística: «Viver a nadar é o contrário de morrer afogado».
Por força da popularidade crescente, o atleta figuraria no cartaz dos carnavais de Ovar ou Torres Vedras, de bóia e braçadeiras em cima de um carro de lavoura, como rei do corso.  
Um grupo de intelectuais, sempre a farejar o "desenvolvimento" e o "progresso", exigiria em manifesto um tanque de 50 metros por cada freguesia como novo "desígnio nacional".
No parlamento, uma comissão de especialistas discutiria, com ar solene e solerte, a mudança da própria bandeira: em lugar da esfera armilar, uma piscina olímpica; em vez das 5 quinas, 8 pistas de natação.
Em séculos de história marítima, nadaríamos assim do herói de elmo e espada para o herói de calção e touca de banho. O progresso é acalorado, meus amigos. Não suporta armaduras nem roupa apertada.

A Braços Com os Olímpicos

Na sequência do magnífico postal do BOS que precede, gostava de relembrar alguns dados que poderão esclarecer equívocos comuns em torno dos braços estendidos no Olimpismo. A saudação em si não era conotada, à partida, com uma ideologia. Os Escuteiros usavam-na, como mostra a fotografia de cima; e ainda subsiste em muitos países, nalgumas solenidades militares, como no Juramento de Bandeira, por cá. Já nos EUA, fora instituída, por força da acção de Francis Bellamy ainda no Séc. XIX, como a saudação civil à bandeira, ensinada e exortada nas democratíssimas escolas da Federação. Pode parecer estranho, sabendo-se que nos States aos civis e a militares à paisana ou descobertos também é permitida a continência castrense. Mas há uma razão - não o é em todos os ramos, a Marinha não o consente, logo impunha-se um símbolo de universalidade maior. Só em pleno conflito mundial, em 1942, o Congresso Americano, com puritanismo típico, aprovou resolução formal de a substituir pela mãozinha no coração que, hoje, vemos nos atletas medalhados de tais paragens e da qual temos de suportar a macaqueação por juventudes europeias ignaras e inocentes, que nem desconfiam de o gesto, por cá, ser apanágio de Maçonarias...


No Olimpismo, era a saudação habitual. Em vários Jogos atletas Franceses, Holandeses, Canadianos, entre outros, a adoptaram e ficou mesmo consagrada nos selos oficiais alusivos ao certame de 1924, em Paris. O próprio Jesse Owens se preparava para estender o braço, como lhe haviam ensinado em miúdo, até que algum elemento mais politizado da delegação Norte-Americana lhe sugeriu que, para evitar equívocos, levasse antes a mão à testa, mesmo carecida de pala. Ficou, sobreviva à avalanche do politicamente correcto, a estátua da Saudação Olímpica, pela Escultora Gra Rueb, em homenagem a um membro do Comité Holandês correspondente. Até quando se aguentará num mundo decadente onde, salvo no esbracejar preso a estas insignificâncias, «olímpico/a» passou a crismar o substantivo "indiferença" em vez de, como seria lógico, continuar a qualificar o esforço?

 

A Carta Olímpica e a extrema-direita

A remadora alemã Nadja Drygalla, após uma reunião com o Comité Olímpico da Alemanha, abandonou a aldeia olímpica depois de a imprensa do seu país ter noticiado que o namorado é militante da extrema-direita. Parece que a ideologia do rapaz põe em causa o compromisso da atleta com a Carta Olímpica. 
Nadja Drygalla

Em 1936 os Jogos Olímpicos realizaram-se em Berlim, capital da Alemanha nazi de Adolf Hitler. Já havia Carta Olímpica, porventura em versão nem corrigida nem aumentada. Pela primeira vez a tocha saiu de Atenas para a sede da competição. A chama viajou durante 11 dias até chegar ao estádio de Berlim. Na cerimónia de abertura, Hitler recebeu das mãos de Spyridon Louis, campeão grego da maratona dos Jogos de 1896, um ramo de oliveira colhido em Olímpia.  
Hitler e Spyridon Louis

Os jogos berlinenses ficaram marcados pelas técnicas inovadoras de Leni Riefen­stahl, o escândalo de Dora Ratjen (a lembrar as mulheres-homens de hoje) e os mitos sobre Jesse Owens. Ao contrário do que costuma ser difundido pela "imprensa de referência", as quatro medalhas de ouro conquistadas pelo atleta norte-americano não causaram o menor engulho ao chanceler alemão. É o próprio Owens quem o confirma na sua autobiografia: "Quando passei pela tribuna do chanceler [Hitler], ele levantou-se e acenou-me com a mão" (The Jesse Owens Story, 1970).
Após os Jogos, Jesse Owens andou mesmo em tournée pela Alemanha, recebido e homenageado em diversas cidades. Fartou-se de dar autógrafos. Mal recebido foi ele no seu próprio país, obrigado a viajar nos bancos traseiros dos autocarros, que os da frente destinavam-se exclusivamente a brancos. Queixava-se Owens que não teve direito a convite para a Casa Branca. Pensava, decerto por ingenuidade, que o edifício fora crismado desse feitio só por causa da cor das paredes. Owens era preto, neto de escravos, considerado impuro para estender a mão ao democrático Franklin D. Roosevelt, que em véspera de eleições não queria ferir as susceptibilidades raciais dos eleitores sulistas.
Long aconselha Owens em pleno Estádio Olímpico
A forma como Owens conquistou a medalha de ouro na prova de salto em comprimento merece ser contada. Durante a prova de qualificação, o alemão Luz Long, principal adversário de Owens, já tinha a presença na final assegurada. Owens, por seu lado, estava à beira da eliminação, após dois saltos nulos. Foi aí que se deu uma extraordinária manifestação de desportivismo (hoje diz-se fair play). Long abeirou-se de Owens e aconselhou-o a mudar a técnica de salto. Owens concordou e teve sucesso. Resultado? Na final, conquistou aquela que seria a sua quarta medalha de ouro, enquanto Luz ficou em segundo lugar. Saíram da pista juntos, o braço do nazi de olhos azuis por cima dos ombros do negro do Alabama. Por este gesto, Luz Long recebeu a título póstumo a medalha Pierre de Coubertin, concedida pelo Comité Olímpico Internacional a atletas que demonstrem um elevado desportivismo e espírito olímpico. Morreu em combate na II Guerra Mundial, vítima dos bombardeamentos dos Aliados.
Jesse Owens no pódio, vencedor da prova de salto em comprimento. De braço ao alto, Luz Long. Nos nossos dias o atleta alemão seria certamente afastado dos Jogos.
Pierre de Coubertin (conhecido como barão de Coubertin), pedagogo e historiador francês, foi o fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna. As suas ideias sobre cultura física abonavam o programa nacional-socialista. Asseverava ele: "Há duas raças distintas: a do homem de olhar franco, com músculos fortes, com desenvolvimento assegurado, e a do doentio, de semblante resignado e humilde, e ar vencido". E de modo mais impressivo, registava: "Cinzelando o seu corpo pelo exercício, como faz um escultor numa estátua, o atleta antigo adorava os deuses. Fazendo o mesmo, o atleta moderno exalta a sua pátria, a sua raça, a sua bandeira".
Aos detractores da organização berlinense, respondeu o barão no jornal L’Auto, a 4 de Setembro de 1936: "O ideal olímpico foi sacrificado à propaganda? Isso é inteiramente falso. Os Jogos de Berlim serviram magnificamente o ideal olímpico". O francês manteve-se como Presidente Honorário do Comité Olímpico Internacional até à sua morte, em 1937. Talvez hoje o pobre Coubertin, tal como Luz Long, fosse banido da competição que ele próprio recriou. Não conheço o traçado actual da Carta Olímpica, porventura grafado por Vital Moreira ou outro jurista de alta competição. Provavelmente o notável documento já consagra a via para o socialismo, o antifascismo e o estabelecimento de uma sociedade sem classes. A ser assim, é a própria Carta que nega o espírito olímpico.