Acordices


Recebo uma mensagem de correio electrónico da EDP de "Factura electrónica", com o assunto "Envio de fatura eletrónica". É esta a simplificação anunciada do famigerado (des)Acordo Ortográfico. A multiplicidade de grafias e a total trapalhada da "transição". Um desastre que nada de positivo traz à nossa Língua.

A Breve Geral


A concepção mobilizadora da Greve Geral que Georges Sorel sublinhou perde actualidade nos nossos dias pelo declínio do Proletariado como categoria-estanque, bem como pela diferente natureza do combate que as pessoas sentem urgência em travar, através da recusa do trabalho. Não está já genericamente na ordem do dia a tomada do Poder por uma categoria, mas simplesmente o grito de protesto perante as exacções impostas, paralelo ao berro do vitelo quando marcado com ferro em brasa. A falência que se atesta é a da fantasiosa legitimação de tributos e redução de prestações pela concordância dos representantes eleitos dos humilhados e ofendidos que maioritariamente somos, ao sofrermos as sangrias ditadas pelos detentores da máquina estatal. É que os partidos, na criação de uma nova classe com a base na ocupação do governo e burocracia adjacente, romperam qualquer equilíbrio assente no seu contrário - o recurso a uma classe prévia como campo de recrutamento do topo da Administração.
Com isto e a submissão a sufrágio de mil e uma questões programáticas, tantas vezes sem correspondência ulterior, completou-se a desmontagem da razão de ser da Representação apartidária isenta dos fretes facciosos das cores diversas - dar o aval ao sacrifício em nome e de acordo com as possibilidades e disposição de uma natural comunidade profissional ou territorial.
Na paralisação instantaneamente esgotada de ontem, a maioria esmagadora, digna de compreensão, apenas avisava que o limite do que podia suportar estava perto, o que só se pode desvalorizar por insensíveis constatações de habituação a padrões artificialmente altos e pela crítica de ter a situação de descalabro sido obra de votos e apoios protagonizados ao longo de anos pelos próprios que assim protestavam.
É na pecha precedentemente apontada que reside a aproximação dessa imensa mole à detestável fracção de "insurgentes em full time", o único grupo que tinha uma agenda revolucionária, embora caracteristicamente confusa e vaga. Refiro-me aos Indign(ad)os da primeira linha dos confrontos com a Polícia, integrantes até de estrangeiros que nem a língua conheciam, os quais gritavam «25 de Abril sempre, Fascismo nunca mais!», fingindo não saber que eram as instituições abrileiras as autoras das tristes proezas que impugnavam na rua os manifestantes, no seu conjunto. Como que uma espécie de ampliação da conivência de todos os demais, ao caucionarem com o voto a constante tragédia do Engano.

A imagem é Greve, de Mihály Muncáksy

Greve

Ainda para aí muita gente contente com uma greve qualquer (mais uma) que está agendada para breve. Como sempre, quero lá saber! A única greve que faço é ao (des)Acordo Ortográfico. Para sempre!

A Hipóstase da Falácia

Um slogan é, para preguiçosos, o sucedâneo de uma Doutrina. Quando o Regime vigente, nos seus alvores, se pretendeu legitimar através dos três célebres Ds imputáveis ao Casal Medeiros Ferreira, tentou-se branquear um golpe sórdido informado por ambições de carreira de oficiais subalternos pouco dispostos a continuar a arriscar o couro, com umas vagas ramificações trinas de um uno acto revolucionário: Democratizar, Descolonizar, Desenvolver. Facilmente se percebia que, a prazo, se o País sobrevivesse, ainda que formalmente, à overdose da "resvalação", teria de ser no derradeiro dos três que poderia assentar uma qualquer  camuflagem da mediocridade, porque abandonar aos arbítrios das maiorias a aparência das escolhas dos governantes deixa de ser sedutor quando estes passam a asneirar e locupletar-se mais do que a ultra-indulgente conta, numa sociedade que não preza a confissão de culpas próprias, mesmo que apenas as de remotas opções. E porque dar de bandeja aos poderosos que nos pressionavam território que Compatriotas defenderam à custa da própria pele cessa de ser estimável quando o célebre e essencial recuo histórico faz das suas..
Restava, por conseguinte, a miragem desenvolvimentista com a componente de generosidade grudada à edificação do Estado Social, a qual fazia tábua rasa do crescimento mais acelerado que o Portugal Contemporâneo conheceu, por ele ser pertença da segunda metade do Estado Novo, como das melhorias sociais por ele produzidas, sempre depreciadas por demasiado lentas e, aliás, ditas de fachada.
Hoje, quando  os poderosos do momento tiram com uma mão as migalhas (na linguagem de Álvaro Cunhal) que com a outra deram, anunciando com trombas e trombetas o Empobrecimento e reconhecendo, mau-grado seu, toda a razão que a Salazar incumbia ao enquadrar os avanços da Colectividade na base financeira sólida que estas luminárias alegremente ignoraram, fica claro, cuspido e escarrado, que A «Revolução dos Cravos» não foi tanto a das infelizes flores vermelhuscas usadas e abusadas, mas as dos pregos que nos prendem a uma cruz portadora do contrário da Salvação.

Votemos pois

De que feriado abdicaria?

Fica dito pela voz de quem sabe

Para lá dos feriados religiosos, só há duas datas nacionais: o Dez de Junho e o Primeiro de Dezembro.
Para mim, é data nacional toda aquela que engrandece Portugal.
O resto são epifenómenos ideológicos.

Marcello Duarte Mathias, Diário de Paris, Asa, Lisboa, 2006.

Bem acompanhados

Dantes vivíamos «orgulhosamente sós».
Agora não! A troika vem sempre visitar-nos de três em três meses.

Um acordo óptimo

Das várias insanidades do Acordo Ortográfico, saltou-me hoje ao caminho uma das mais berrantes. Os brasileiros poderão grafar indistintamente óptimo ou ótimo, variantes que o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras regista, por não ser uniforme a pronúncia desta palavra no Brasil. Já os portugueses serão obrigados a escrever ótimo.
Agora, agarrem-se bem: num dicionário global da língua portuguesa, óptimo figurará apenas como variante legítima do português do Brasil.
É impressão minha, ou estes gajos passaram-se de vez?

Uma biografia infamante

Parece que Mega Ferreira padecia de um trauma juvenil por obra sem graça de José Agostinho de Macedo, em episódio ocorrido no Pedro Nunes. Vai daí, seguindo as melhores práticas psiquiátricas, decide ajustar contas com o padre oratoriano, aliviando-se num livro que é menos biografia que libelo descarado.
A obra tardou umas décadas, mas chegou. Levou tempo o escriba a mudar de vestimenta. Teve de desajoujar-se dos paramentos de gestor, e de buscar novo preparo nas alfurjas da historiografia politizada. Vem de biógrafo, doublé de historiador e novelista — e vamos lá que lhe assenta a matar.
José Agostinho tinha dois ódios de estimação: a seita pedreiral (maçonaria) e os malhados (liberais). Já Mega parece manter um só ódio, grande e entranhado, ao pregador régio. Ele próprio, já quase no fim de esguichar as sentenças odiosas, reconhece o seu "parti-pris em relação a Macedo" (p. 307). O padre escapou à Inquisição; ao cabo de 200 anos não consegue fugir dos tratos de polé do torcionário Mega.
Para redigir o destampatório, diz o autor que mergulhou no "conturbadíssimo reinado de D. João V" e fez-se "liberal, constituinte, depois cartista". Confessa com apreciável franqueza que só não conseguiu colocar-se na "pele do miguelismo, que é absurdo político e inanidade moral" (p. 13). Diz que era em tascas que se reunia "a canalha miguelista" (p. 276). Com profundos complexos de plebeu, grafa o nome inteiro de D. Miguel por zombaria: "desculpem, mas não resisti a dar-lhe o nome completo…", explica na página 264, esquecido de que o mano Pedro, de que ele tanto gosta, ostentava um nome igual de extenso.


Ao longo das quase quatrocentas páginas do seu livro meganovelizado, não dá tréguas à macedofobia. Desanca o padre nas suas contradições, venalidade e amores freiráticos. Os democratas são assim. Respeitam a intimidade de todos, salvo dos inimigos. Destes já se pelam eles por exibir à farta as misérias de alcova. Sobre as contradições e a venalidade, estamos conversados. As primeiras são hoje consideradas uma qualidade (só os burros não mudam, diz-se agora); e mesmo a segunda não anda longe disso. Mas neste exibir da fraqueza, sinto que Mega descobriu no biografado os traços do seu próprio timbre moral. Deparou-se-lhe a estrada de Damasco nas pensões e tenças de Macedo, de onde não mais se desferrou. Que podia o velho padre fazer? Como ainda não houvesse Parque Expo nem Centro Cultural de Belém para que os homens íntegros, de rabinho sentado nos conselhos de administração, pudessem abichar salários e prebendas — os antigos desenrascavam-se com os reis e os contratadores de tabaco.
De qualquer modo, este método de catar as impurezas privadas tem os seus méritos. Aplicado aos dias que correm, serviria para sarjar fundamente as carnes destes desgraçados da III República, que forcejam — eles, sim — na incoerência e na roubalheira.
Apesar do esforço de Mega, o padre José Agostinho de Macedo continua a ser um polemista de mão cheia, à antiga portuguesa, do tempo das velhas pelejas políticas e literárias, antes dos totós terem descoberto as virtudes do diálogo, do consenso e das palmadinhas nas costas. Várias obras do verrinoso Macedo merecem ser hoje lidas e relidas: desde logo, o seu sermonário, sobretudo o Sermão sobre a Verdade da Religião Católica e o Sermão do Primeiro Domingo do Advento, mas também as Cartas Filosóficas a Attico, os 4 volumes do Motim Literário, algumas páginas políticas e o conteúdo infrene de A Besta Esfolada.
Da obra do Mega ninguém dirá o mesmo daqui por uns anos.

A vergonha de ser português

Como escreveu há dias o Miguel Castelo-Branco, os palermas riram-se de Salazar e da cultura do aforrozinho. Era para eles uma visão campónia e atrasada, incompatível com os seus projectos desenvolvimentistas. Prometeram-nos a Europa, a felicidade, a abundância e dinheiro a rodos. O resultado deste programa extraordinário tem feito os títulos da imprensa. Estamos cada vez mais pobres: na verdade, falidos e mal pagos. Destruídas a agricultura, a pesca e a indústria, dependemos da ajuda externa, sem a qual morreríamos de fome e inanição. Vamos sobrevivendo ligados à máquina da troika, que é quem manda. No estrangeiro, experimento todos os dias a vergonha de ser português. Chegou a hora de apontar o dedo ao regime. Ou acabamos nós com ele, ou há-de a besta fatalmente acabar connosco.